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Lava Oculta...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Uma coisa boa quando dividida, multiplica-se... Partilho convosco um dos meus poemas preferidos do Júlio Dinis!

Não me entendes? Não suspeitas
Que esta frieza é fingida?
Não vês, cega, que envolvida
Está nela ardente paixão?
Quando teus olhares evito,
Quando julgas que medito,
Não compreendes que me agito
Em profunda inquietação?

E julgas isto frieza?
Julgas que o meu peito é gelo?
Se o que sinto não revelo,
Julgas que isso é não sentir?
Ai, louca, que assim te iludes;
Um momento que me estudes,
Verás que as tormentas rudes
Me estão no peito a bramir.

Se a mão te cinjo à partida,
Não a sentes vacilante?
Diz, não vês como inconstante
Busco e evito o teu olhar?
Chamas a isto indiferença?
Não é, não, repara, pensa;
É o amor que se condensa
Para mais me devorar.

E tu não sentes… nem podes;
P’ra que os olhos vejam tanto,
E, sob indiferente manto,
Descubram violento amor,
Não, não basta olhar somente;
O que o peito não pressente,
Só quando for rebente
Pode aos olhos ter valor…

E o teu coração… outrora
Esperei que me entendesse;
Julguei que nunca esquecesse
O que na infância nasceu,
E com os olhos no futuro
Caminhei firme e seguro,
E nunca este culto puro
No peito me adormeceu.

Mas tu… essa flor singela
Da afeição que nos unia
Se definhava e morria
Desde que outra flor surgiu:
Cenas da infância, folguedos,
Seus sorrisos, seus segredos,
Passam, como nos olmedos,
A folha que ao chão caiu.

E por isso as esqueceste;
Eu não; que então já no seio
Ocultava com receio
Mais do que infantil amor.
Quando, só, em ti pensava,
E só contigo me achava,
Não te lembras? Já corava,
Nem p’ra mais tinha valor.

Cresci, e esta ideia sempre
Afagava na lembrança;
Sempre, sempre esta esperança,
Sempre, sempre esta ilusão!
Ilusão, sim, era apenas;
Todas as passadas cenas
E recordações amenas
Riscou-tas nova paixão.

Foi uma noite. Esta ideia
Inda a conservo bem viva,
Cada dia mais se aviva
P’ra mais me fazer sentir;
Desde então já não me iludo,
Foi uma noite; vi tudo,
E fiquei gelado, mudo,
Sem esperanças, sem porvir!

Um outro estranho, que importa?
Te falava com meiguice
E às palavras que te disse
Tu sorriste e ele sorriu.
E, desumana, não vias
Que o amigo de outros dias,
De cada vez que sorrias,
Cruéis angústias sentiu!

Ai, noite de insónia, aquela!
Tu calcaras o passado,
Nem talvez nunca pensando
Havias nele como eu;
Quis esquecer-te, vingar-me,
A outro amor entregar-me.
Mas só consegui cansar-me;
Este amor permaneceu.

Até quando? Só Deus sabe.
Comprimido ele floresce,
Mas vive, mas não fenece,
Que já da infância ele vem;
Tu não vês que uma outra chama
Há muito teu seio inflama,
E quando deveras se ama,
Vê-se o amante e mais ninguém?

Bom é pois que não suspeites
Que esta frieza é mentida
Que não vejas que envolvida
Oculta ardente paixão.
Quando teus olhos evito,
Quando julgas que medito,
Nunca saibas que me agito
Em profunda inquietação.

1 comentários:

Anónimo disse...

No liceu, decorei este poema propositadamente para uma aula de Teatro, e cabei por sentir cada palavra, numa paixao liceal tipica da época... lamentavelmente não correspondida. Mas ainda hoje faz sentido a quem vive na incerteza de ser amado, ou não. Obrigado pela recordaçao.

Maria Serra